Páginas

quinta-feira, 29 de maio de 2014

RETRATO DO ABANDONO

O tempo consome o que ainda resta de uma estação construída para abrigar a velha Maria Fumaça em Pouso Alegre. No local, a “Locomotiva 205” está estacionada com seus vagões à espera de uma atitude dos órgãos públicos para revitalizar esse patrimônio. Recentemente, dois de seus vagões foram queimados pelo fogo ateado por anônimos. A lataria está pichada e a ferrugem avança por todos os lados. O mato cobre os trilhos e os dormentes apodrecem com o tempo. Os sinos, o farol e as placas de metal foram roubados. Junto com eles, perdeu-se um capítulo importante da história da linha férrea regional e de uma tentativa de resgatar o passado por meio do turismo.


Seu Tarcísio participou do projeto. Ele conta que precisou da ajuda de três ferroviários e de muito empenho para que a estação turística ganhasse forma. Eles foram até a estação Imbuia para retirar os trilhos abandonados após a desativação da estrada de ferro. Desmontaram três quilômetros da linha de ferro que estava abandonada, primeiro retiraram os pregos, soltaram os trilhos e, por fim, recolheram os dormentes. Para transportar todo o material foi necessária uma carreta. A linha foi remontada perto da BR 459, mas o trecho era curto demais. Com a ajuda de um deputado, foram levados para o local materiais necessários para a construção de mais cinco quilômetros de estrada. Para adquirir a locomotiva, que chegou de Três Corações em uma carreta, uma associação criada no município e a Prefeitura arcaram com as despesas. Depois de finalizadas as obras de construção da linha, foi realizada a inauguração do trecho. O passeio custava cinco reais e o percurso era feito até o bairro Belo Horizonte, em Pouso Alegre, de onde o trem voltava para a estação. Depois de algum tempo, houve alguns problemas entre os dirigentes e Seu Tarcísio se desligou da associação. Tempo depois, a linha foi desativada. Como os custos de manutenção de uma linha turística são altos e não houve mais interesse por parte das autoridades. Seu Tarcísio e outros entusiastas viram morrer o sonho de vivenciarem um novo apogeu da linha férrea em Pouso Alegre, agora como atração turística.

Sentimento semelhante tem o ex-ferroviário José de Paula Andrade, o Seu Juca. Os passos em direção à antiga Estação de Trem de Pouso Alegre, no centro da cidade, são lentos, seguem o ritmo da idade de Seu Juca, hoje com 82 anos. E ele não tem pressa de chegar ao destino, onde, por 18 anos, foi seu local de trabalho. Por alguns instantes, o ex-ferroviário parece se esquecer do presente ao interromper inesperadamente a caminhada. O olhar se fixa na direção da antiga Estação e analisa cada detalhe. A respiração logo fica profunda e a face é emoldurada por lágrimas, enquanto surgem, à sua frente, cenas do passado, que apenas ele pode ver.

A vida do ex-ferroviário seguiu novos rumos com o fim da estrada de ferro. Mas, para ele, é impossível não se lembrar do dia a dia da pacata cidade do século passado e do grande movimento na estação da cidade. Chegavam carroças, tropas, carros de boi, cavaleiros e carro de luxo que disputavam espaço com as locomotivas. Nas janelas, olhares curiosos acompanhavam quem chegava a cidade. E, na plataforma de embarque, muitas lágrimas rolavam nas partidas. A estação era ponto de encontro para uma boa conversa entre os fazendeiros que marcavam ponto no local.

Era madrugada quando o galo interrompia mais uma vez o sono da vizinhança e a cidade começava a despertar. Minuto a minuto, o apito avisava que o trem estava se aproximando da cidade. À medida que avançava, o som ficava mais intenso e, naquela manhã, parecia ser diferente, como se anunciasse que o trem percorria os trilhos em sua última viagem. Logo o dia amanheceu e Seu Juca partiu rumo ao seu trabalho. No caminho, ele percebia o intenso movimento de carros pelas ruas e avenidas que cresceram rapidamente. O barulho das buzinas penetrava em seus ouvidos. Eram cenas diferentes da época que conquistou seu espaço no mundo das ferrovias. Mesmo sem entender essas transformações ele seguiu rumo à bilheteria da estação.

Antes de o dia terminar, ele sabia que sua missão seria interrompida quando cruzasse a porta de entrada da estação. Aquele seria o dia em que o ferroviário Seu Juca, ou Juquinha da estação, seria testemunha da cena mais triste da sua vida. As mesmas mãos que, por anos, venderam bilhetes aos passageiros seriam as responsáveis por usar as chaves da estação para fechá-la definitivamente. Depois de quase 40 anos dedicados à linha férrea, parte de sua vida era levada, naquela tarde do dia 31 de outubro de 1983, pelo trem que um dia cruzou a sua vida.

Inconformado com o fim da ferrovia e para não presenciar a retirada dos trilhos e dormentes, Seu Juca, que residia perto da estação, mudou-se para longe do antigo local de trabalho. Mesmo depois de tantos anos, ele ainda se lembra de cada detalhe e lamenta que, em todo esse tempo, as únicas chaves que passou a carregar consigo são as de sua casa, que fica bem distante da antiga estação. Dor para uns, sinônimo de felicidade para outros, o espírito saudosista é o combustível para o retorno dos trens aos trilhos, mesmo que apenas turísticos, em cidades da região.

Um comentário:

  1. Meu caro jornalista Jailson Silva ,
    Só posso parabenizar-lhe pelo excelente trabalho!!
    Sua linguagem demonstra muito sentimento , sendo simples e direta .
    Tenho certeza de que pela sua experiência de vida , apesar de sua juventude , seremos sempre brindados com um conteúdo eclético , que fará muito bem para todos nós. Pode ter certeza que terei a honra de acompanhar sempre o seu promissor trabalho...Promissor porque sempre vc procurará evoluir cada vez mais , não se estagnando jamais!!!

    ResponderExcluir