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quinta-feira, 29 de maio de 2014

CONFLITO NOS TRILHOS

Já faz cinco décadas desde que Seu Pedro, ex-conservador de Linha, passou pela última vez pela estrada que dá acesso ao cenário de um dos mais graves acidentes ferroviários registrados no sul de Minas. O ex-ferroviário confere cuidadosamente se o traje escolhido está adequado para uma missão tão importante, como se as rugas que lhe cobrem a face e as histórias que ele narra, num monólogo eloquente, não fizessem dele digno de retornar ao local histórico, onde muitas vidas foram interrompidas precocemente. Cada quilômetro percorrido, agora como passageiro de um carro, torna as lembranças mais próximas e o ex-ferroviário mais introspectivo. Aos 82 anos, o senhor de fala calma aperta ansioso uma mão contra a outra e esboça um sorriso a cada nova curva do caminho. O cheiro do mato que cobre parte da estrada, onde antes havia trilhos e dormentes, invade o veículo e faz com que o ex-ferroviário se veja na época em que trabalhava na linha próxima à estação do Pedrão. O sorriso largo imediatamente surge.

Não demora e Seu Pedro se lembra das dificuldades enfrentadas para conseguir o primeiro emprego. O que ele queria era trabalhar para sustentar a família. “Eu tenho lembranças; saudades não. Era muito difícil o trabalho pra cá”, comenta. Ele era um simples operário que trabalhava em meio ao sol e à chuva. A jornada de trabalho tinha início de madrugada e terminava no fim da tarde. Muitas vezes, a chama da lanterna de querosene era a única luz que ele tinha para aguentar as longas horas de trabalho.

Passados mais alguns quilômetros, Seu Pedro aponta orgulhoso para uma espécie de túnel, que se apresenta majestoso logo à frente, como se o próprio ex-ferroviário tivesse trabalhado na obra que, por anos, permitiu à Maria Fumaça transitar entre a cidade de Maria da Fé e a estação Pedrão, no município de Itajubá. Parte da imponente rocha está coberta por pequenas plantas, que se esgueiram em busca de sol, enquanto filetes d’água brotam por entre o manto verde viscoso. O ex-conservador de Linha ressalta não ter trabalhado na obra, que foi executada no século XIX, e também se preocupa em deixar claro que não foi uma das testemunhas do acidente que ocorreu ali perto, em 1926. Seu Pedro agora parece aflito. Teme decepcionar quem ouve as histórias que, há anos, ninguém lhe pede para contar.

O ex-ferroviário pede para descer do carro e segue em direção a um lugar tranqüilo, que esconde, entre mato e bananeiras, marcas de um terrível acidente de trem registrado no ano de 1926, desconhecido pela maioria das pessoas que passa pelo local. O triste episódio, motivado por falha humana e que custou a vida de três funcionários da Viação, ocorreu no quilômetro 62 da serra de São João, entre as cidades de Maria da Fé e Itajubá. A locomotiva n° 172, que deveria chegar à cidade de Itajubá às 20 horas do dia 26 de março, caiu com quase toda a composição rolando, em um grande aterro. Quando o trem se aproximou do local, recebeu do responsável pela vistoria a lanterna verde, símbolo de que tudo estava em ordem na linha. Entretanto, na tarde daquele dia 26, houve uma grande tempestade na região e o responsável pela vistoria do trecho, na verdade, não fez a verificação dos trilhos devido à forte chuva. O vistoriador preferiu se proteger do temporal a se molhar para verificar se havia algum problema nos trilhos. Seu Pedro conta que, sob a linha, existia um aterro com um bueiro que dava vasão para a água da chuva e, naquele dia, a grande quantidade de água da chuva destruiu o aterro, deixando os trilhos suspensos no ar, o que não foi identificado pelo responsável pela vistoria.


O desastre foi registrado na edição n° 593 do Jornal Correio do Sul, da cidade de Santa Rita do Sapucaí, do dia 28 de março de 1926, com o título “Mais um”, já que os descarrilamentos e tombamentos de locomotivas eram comuns na região. “Pra tirar a máquina, construíram uma linha de 200 metros pra emendar lá adiante. Levou uns 15 dias pra dar conta dela aqui fora”, explica Seu Pedro. Quando ele trabalhou no local, presenciou diversos acidentes, muitos deles nas curvas. “Os guinchos que ajudavam a retirar os vagões e locomotivas que tombavam ou passavam por algum acidente demoravam muito para chegar”, lamenta o ex-ferroviário. Mas os acidentes não eram os únicos problemas enfrentados por aqueles que trabalhavam na linha férrea.

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