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quinta-feira, 29 de maio de 2014

NA JANELA DA SAUDADE

Percorrendo a antiga estação de Itajubá, José Arildo do Carmo parece aguardar ansioso a chegada de um trem, que jamais passará novamente pelo local. O tempo passou para o aposentado de 61 anos, mas as cenas continuam vivas na sua memória. Filho do ex-ferroviário “Niquinho”, que trabalhou por 30 anos na oficina da Rede Mineira de Viação em Itajubá, foi lá que ele aprendeu a dar os primeiros passos em direção às locomotivas. Quando não ia até a oficina com o pai, era de casa que ele admirava os trens. O sol já ia baixando no horizonte, sumindo ao longe por detrás da serra, e o pequeno José Arildo do Carmo corria para os braços da mãe, pedindo para que ela repetisse o ritual diário: colocá-lo na janela lateral da sala da casa simples em que viviam para que o menino sonhador, apesar de seus cinco anos de vida, pudesse ver a imensa máquina de ferro seguir caminho sobre os trilhos e dormentes que se debruçavam no caminho rente ao pasto ao lado da humilde moradia. O apito anunciava que a Maria Fumaça estava muito perto e, qualquer descuido, impediria o garoto de espiar o que, para ele, seria seu futuro.


O trem passava pelo centro e fazia uma curva para seguir em direção ao Bairro Boa Vista. Nesse instante, apitava porque havia um cruzamento logo à frente. Esse percurso, conhecido como “a volta da linha”, deixava o garoto em alerta. Mais alguns metros, no quilômetro 85, a Maria Fumaça apitava, era sinal de que estava bem próxima. O cheiro da lenha queimada e do vapor lançado contagiava o menino. “Minha mãe sempre me contava e achava engraçado [...] Se ela não me levasse para ver o trem eu chorava até passar outro trem”, conta sorridente, como se estivesse vendo a cena. Com o passar dos anos, o ritual foi mantido, mas ele já corria sozinho para presenciar a passagem do trem. Os maquinistas, acostumados com a atitude do garoto, acenavam para ele quando passavam. Embora fosse novo demais, ele tinha a certeza de que sua vida se cruzaria com a história das ferrovias.


Agora, a estação em que José Arildo respira saudade está vazia, muito diferente dos dias de intenso movimento do passado. Entrando na estação, à esquerda, está o balcão do telégrafo e, mais à frente, a bilheteria. Mais alguns passos, e José Arildo se depara com a plataforma de embarque e desembarque. É impossível imaginar quantas pessoas passaram pelo local, quantas as partidas e despedidas, ou os destinos seguidos em cada uma das estações da vida, que sonhos ficaram e os que foram esquecidos devido ao tempo. O olhar fixo do aposentado não perde um único detalhe. O sino e o relógio que ficavam pendurados na parede não existem mais, o tempo ficou parado. Só se ouvem buzinas ao longe. Por alguns instantes, ele observa atentamente tudo à sua volta. Embora não tenha trabalhado sobre os trilhos como o pai, sente falta dos tempos das grandes máquinas de ferro.

José Arildo não está sozinho. Também filho de ferroviário, Seu Tarcísio Silva, 77 anos, não suportou esperar pelo retorno improvável das locomotivas. A vida fez dele bancário e advogado, mas a realização pessoal só veio com um ofício que ele não sabe nomear. Há 20 anos, ele resolveu construir no quintal de casa, na cidade de Pouso Alegre, uma mini-ferrovia, reproduzindo em detalhes a paisagem típica de Minas Gerais. Um a um, os trilhos foram cuidadosamente fixados ao chão com dormentes de madeira feitos de caibro. Para fazer os trilhos, ele utilizou duas cantoneiras e um “T”, que foram soldados. A bitola dos trilhos é de 60 centímetros, menor que a bitola dos trilhos da Sapucaí que eram de 1 metro de distância entre as duas extremidades dos trilhos. Duas linhas se cruzam, permitindo algumas manobras entre um trem de cargas e de passageiros. A brincadeira em tamanho próximo do real começou na antiga casa em que residia, com um trole para brincar com seus filhos. Depois, ele desenhou um vagão de carga, levou o projeto a uma serralheria para ser feito com chapa de ferro. Em seguida, foi a vez de criar um vagão de passageiros e, por último, ele construiu uma locomotiva modelo a diesel.


O espaço foi ficando pequeno demais para tanta imaginação e Seu Tarcísio decidiu comprar uma casa com um quintal bem maior. Conseguiu um caminhão para transportar tudo para a nova residência e a montagem foi feita com a ajuda do filho Daniel que, desde pequeno, também é um apaixonado pelos trilhos. Hoje, o quintal tem um complexo ferroviário com 80 metros de trilhos. Cada trecho é sinalizado com placas que indicam a quilometragem, há até um desvio e uma pequena oficina de manutenção. Mas o que realmente chama a atenção é a locomotiva, vermelha com listras amarelas e com o tamanho de uma pessoa. Ligada a locomotiva, o tímido Seu Tarcísio abre imediatamente o sorriso, e faz questão de mostrar todo o funcionamento da máquina. Engatados nela, estão três vagões, sendo um especial para os correios, outro para o transporte de passageiros e, o último, para carga.

O pai de Tarcísio sabia do amor que ele tinha pelas ferrovias, mas não queria que o filho único embarcasse naquela vida sacrificada, devido ao baixo salário. Para satisfazer a vontade do pai, ele se dedicou aos estudos, comenta emocionado e se cala em seguida. O silêncio e as lágrimas explicam as angústias e sofrimentos que ele carrega por ter trilhado o caminho que almejava. “Eu me arrependo de não ter entrado na ferrovia. Eu deveria ter entrado”, desabafa. A dedicação com que ele preserva parte da história testemunhada pelo pai e que ele não teve a oportunidade de viver são guardadas na memória do saudosista, juntamente com os trens que o progresso tirou dos trilhos.

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