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quinta-feira, 29 de maio de 2014

O DIA QUE O TREM PAROU 

Era durante a noite que ele aparecia para cortejá-la no portão de casa. Vestindo uma enorme capa preta, o jovem galanteador conquistava, com doces palavras, a jovem apaixonada Odete Sales Abranches, na época, com 22 anos. Mas também era uma oportunidade para ele compartilhar com a amada as dificuldades que sua família enfrentava devido à falta de pagamento do salário dos ferroviários da Rede Mineira de Viação, para a qual o jovem rapaz “da capa preta”, Sebastião Abranches, e o pai, Paulino Roque Abranches, trabalhavam. Mesmo desanimado com a situação financeira que enfrentava, ele sonhava em constituir a própria família. A jovem era seduzida pela determinação do rapaz para superar qualquer desafio desde que iniciou o namoro com o ferroviário. Nos encontros, Sebastião sempre comentava sobre a realidade vivida em casa e no trabalho, assim como sobre uma manifestação que era organizada com o objetivo de lutar contra a miséria que castigava as famílias dos ferroviários.

Na época, o Brasil passava por um período de transição. Era o fim do governo do presidente Gaspar Dutra e início do governo Getúlio Vargas. O país entrou numa crise econômica muito intensa, com inflação elevada e falta de dinheiro para pagar as importações. Odete, hoje com 86 anos, se recorda que os ferroviários não recebiam salários havia mais de três meses e o valor da remuneração era muito baixo, o que agravou a situação dos trabalhadores e de suas famílias. Uma cooperativa que servia á Rede não atendia às necessidades dos trabalhadores e já faltavam alimentos essenciais. Odete comenta que era planejada uma greve, liderada pelas esposas dos ferroviários.

Com voz mansa e suave, Odete relembra que, poucos dias antes do início das manifestações grevistas, o sogro, Paulino Roque Abranches, convidou amigos ferroviários para um baile em casa. Era a maneira encontrada por ele para despistar as autoridades e acobertar a realização de uma reunião para os ferroviários se organizarem e auxiliarem as esposas nos atos grevistas. Contudo, Paulino e os colegas foram surpreendidos por um coronel que trabalhava na cidade de Itajubá. Pegos em fragrante, ele foi preso e permaneceu por dois dias na cadeia. “Meu sogro foi demitido, mas, depois de um tempo, ele voltou e foi transferido para Três Corações”.


Ainda hoje, ela se emociona ao se lembrar dos episódios do período que ficou conhecido como greve das mulheres, quando as esposas dos ferroviários clamavam por melhores condições de trabalho para eles e de vida para suas famílias. Era uma luta travada pelo pão de cada dia e pela preservação da vida, um ato de coragem. Odete se recorda que os ferroviários haviam perdido a credibilidade e os comerciantes itajubenses não vendiam fiado para quem trabalhava na ferrovia, pois os trabalhadores ferroviários passaram a ser vistos como mal pagadores. Diante dessa situação, a vida das famílias tornava-se cada vez mais difícil. A dispensa, agora, estava vazia. Não havia mais arroz nem feijão. A cada dia, a situação era mais difícil de ser controlada. “Fome a família do meu esposo nunca passou, mas tinham uma vida de muitas dificuldades”, conta Odete. Porém, nem todas as famílias tiveram a mesma sorte. Os olhos das mães já não tinham lágrimas para expressar tanto sofrimento, que aumentava com a dor de ouvir os filhos chorarem por um pedaço de pão. Inconformadas com tanto descaso da Viação, mulheres de ferroviários uniram suas vozes com outras inúmeras e encontram na luta a melhor resposta para resolver os problemas dos maridos.
Segundo Odete, os atos liderados pelas esposas chamaram a atenção das autoridades, que ficaram incomodadas com o movimento grevista.

A tomada de locomotivas por mulheres de ferroviários foi um dos episódios mais dramáticos e heroicos da greve. Quem dependia do transporte ferroviário para se deslocar para o trabalho em um município vizinho, ficou sem ter como se locomover. “Foi uma confusão na cidade [de Itajubá]”, comenta Odete. A primeira locomotiva a ser parada foi a n° 437, em Cruzeiro, São Paulo, que se tornou a marca do movimento. Apelidada de Joana, a enorme máquina recebeu um cartaz com letras vermelhas que deixaram claros os motivos do movimento: “Nossa luta é contra a fome e a miséria”. Tudo aconteceu no dia 24 de setembro de 1949, quando duas jovens de nomes Geny e Elza, com a bandeira brasileira nas mãos, se jogaram na frente de uma locomotiva que estava na estação de Cruzeiro, São Paulo, pronta para partir, e impediram o maquinista de seguir viagem. Decididas a romper o silêncio dos maridos diante das condições ruins de trabalho, as mulheres deram início à greve na Rede Mineira de Viação. Marchando com os filhos nos braços, elas seguiam pelos trilhos, algumas no último mês de gestação. Odete se lembra que o namorado também comentava sobre os manifestos que ele presenciou em Itajubá, onde manifestantes também impediram que os trens seguissem pelos trilhos. “Em pouco tempo, a plataforma da estação estava lotada de familiares em busca de notícias”, conta.

Odete comenta também que o namorado contava que a manifestação se estendera por onze dias e percorrera várias cidades que faziam parte da Rede Mineira de Viação, dentre elas, os municípios mineiros de Soledade de Minas, Três Corações e Divinópolis, além de Itajubá. No dia 4 de novembro, o movimento foi contido pela força policial do Governador Macedo Soares, um dia depois do governante anunciar que tudo seria resolvido. Policiais aproveitaram períodos em que a população não se encontrava na estação e o número de grevistas era reduzido e espancaram mulheres e crianças. Uma grevista, identificada como Rita Cássia Pinto, foi barbaramente agredida e ficou por onze horas em estado de coma. Pouco tempo depois, Odete se casou com Sebastião e, então, assumiu a posição de esposa de ferroviário. A situação dos profissionais das ferrovias pouco melhorou, mas a união durou e dela nasceram cinco filhos.

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