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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Viação Férrea do Sapucaí

Viação Férrea do Sapucaí (1891-1910)
Rede Sul-Mineira (1910-1931)
Rede Mineira de Viação (1931-1965)
Viação Férrea Centro-Oeste (1965-1975)
Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (1975-1986)


Estação Ferroviária de Soledade de Minas
Município: Soledade de Minas
Inauguração: 14/06/1884

Estação Ferroviária de Carmo de Minas
Município: Carmo de Minas            
Inauguração: 15/03/1891

Estação Ferroviária de Ribeiro
Município de
Inauguração: 01/08/1891

Estação Ferroviária de Cristina
Município de Cristina
Inauguração: 15/03/1891

Estação Ferroviária de Anil
Município de Maria da Fé
Inauguração: 01/01/1931

Estação Ferroviária de Maria da Fé
Município de Maria da Fé
Inauguração: 27/06/1891

Estação Ferroviária de Pedrão
Município de Pedralva
Inauguração: 01/06/1907

Estação Ferroviária de Itajubá
Município de Itajubá
Inauguração: 25/09/1891

Estação Ferroviária de Piranguinho
Município de Piranguinho
Inauguração: 29/04/1892

Estação Ferroviária de Olegário Maciel
Município de Piranguinho
Inauguração: 23/08/1894

Estação Ferroviária de Rennó
Município de Santa Rita do Sapucaí
Inauguração: 01/08/1900

Estação Ferroviária de Santa Rita do Sapucaí
Município de Santa Rita do Sapucaí
Inauguração: 23/08/1894

Estação Ferroviária de Porto Sapucaí
Município de Santa Rita do Sapucaí
Inauguração: 09/11/1910

Estação Ferroviária de Pouso Alegre
Município de Pouso Alegre
Inauguração: 21/03/1895

Estação Ferroviária de Imbuia
Município de
Inauguração: 01/01/1931

 Estação Ferroviária de Borda da Mata
Município de Borda da Mata
Inauguração: 01/08/1895

Estação Ferroviária de Bogari
Município de Borda da Mata
Inauguração: 01/01/1931

Estação Ferroviária de Francisco Sá
Município de Ouro Fino
Inauguração: 17/12/1895

Estação Ferroviária de Ouro Fino
Município de Ouro Fino
Inauguração: 12/04/1896

Estação Ferroviária de Caneleiras
Município de Ouro Fino
Inauguração: 15/03/1897

Estação Ferroviária de Jacutinga
Município de Jacutinga
Inauguração: 15/03/1897

Estação Ferroviária de Sapucaí
Município de Jacutinga
Inauguração: 01/07/1898

quinta-feira, 29 de maio de 2014

EXPRESSO DA SAUDADE

Na infância, os caminhos percorridos pelo pai do cronista José Luiz Ayres eram traçados pela estrada de ferro e as histórias que o menino ouvia fizeram com que o personagem principal de suas narrativas fosse à locomotiva movida a vapor. A inspiração do cronista, atualmente, também surge a partir de relatos contados pelos inúmeros turistas que visitam a velha estação de trem em São Lourenço, no sul de Minas.
José Luiz fica de olhos bem atentos e identifica facilmente os passageiros da Maria Fumaça que têm boas histórias para contar. Para o cronista, a ideia de escrever não apenas sobre o que viveu e o que ouvia o pai narrar é uma alternativa para resgatar as histórias dos amantes dos trilhos e manter vivas as lembranças dos viajantes.

Uma das grandes tristezas de José Luiz é ver o descaso do governo com as estradas de ferro no Brasil. Nas inúmeras conversas que tem com os turistas e frequentadores da estação de São Lourenço, percebe o mesmo sentimento: saudade. Hoje, apenas restam 10 quilômetros dos trilhos inaugurados pela “Viação Férrea Sapucaí” em 1897 e o trecho resiste às provações do tempo e da economia regional. Essas relíquias são mantidas entre as cidades de São Lourenço e Soledade de Minas, onde, nos finais de semana, a velha Maria Fumaça é a atração principal para os turistas que visitam a região. O cronista comenta orgulhoso que o passeio é uma oportunidade de embarcar na história dos barões do café e viajar no tempo.

Em poucos minutos, a estação fica lotada de crianças, jovens e adultos. Para muitos, é o primeiro embarque na imensa máquina de ferro. Para outros, não é a primeira vez, mas também não é apenas mais um embarque. Na primeira batida do sino, os bilhetes são conferidos. Cada um busca seu assento nos vagões e a ansiedade toma conta de todos. Enquanto isso, na cabine da locomotiva, a lenha é colocada no forno para ser queimada e o jovem maquinista faz os últimos ajustes para o início da viagem. Na terceira batida do sino, é hora de partir.

José Luiz explica que a antiga estação de São Lourenço, inaugurada em 1891, pela “Viação Férrea Sapucaí”, é atualmente um ponto turístico mantido pela Associação Brasileira de Preservação Ferroviária. No início, a Associação teve o apoio de comerciantes e da rede hoteleira da cidade, que contribuíram para a reativação da linha férrea, e, depois de um ano de muito trabalho, a estação foi inaugurada em 2001 com uma locomotiva e quatro carros de passageiros. O diretor Operacional da linha, Edelmo Dias de Freitas, conta que as atividades da curta estrada de ferro funcionam graças ao turismo e de parcerias firmadas na cidade. Já foi possível construir até um enorme galpão, onde funciona a restauração de vagões de passageiros, a oficina mecânica e a garagem da locomotiva e das composições que estão em funcionamento. Mais que investimento, para que o trem continue percorrendo os trilhos, a Associação depende da mão de obra de 40 profissionais.

Edelmo relata que a grande atração é, na verdade, a locomotiva 1424, que anos atrás percorria a Estrada de Ferro Central do Brasil. Ela foi trazida da cidade de Guapimirim, Rio de Janeiro, último trecho rodado por ela antes de ser levada para São Lourenço. A restauração demorou três anos e, para que fosse possível, foi realizada uma pesquisa histórica para manter todos os traços originais do patrimônio.

Como se não bastasse o cenário deslumbrante, com uma floresta de Mata Atlântica, montanhas, vales e riachos, a viagem é embalada por uma dupla de violeiros. “Em Cruzeiro, a gente montou um centro de restauração de locomotivas. Estamos reformando uma agora”, comenta Edelmo entusiasmado. A fábrica de sonhos promete não parar e atrair até mesmo quem ainda tem os trens como um importante veículo de transporte da atualidade. A Associação Brasileira de Preservação Ferroviária tem investido também em materiais publicitários para a divulgação das linhas turísticas sul mineiras inclusive na Europa, em países como a Inglaterra, berço da Revolução Industrial, uma forma de reavivar as memórias que vem sendo apagadas na história de todo o mundo.






RETRATO DO ABANDONO

O tempo consome o que ainda resta de uma estação construída para abrigar a velha Maria Fumaça em Pouso Alegre. No local, a “Locomotiva 205” está estacionada com seus vagões à espera de uma atitude dos órgãos públicos para revitalizar esse patrimônio. Recentemente, dois de seus vagões foram queimados pelo fogo ateado por anônimos. A lataria está pichada e a ferrugem avança por todos os lados. O mato cobre os trilhos e os dormentes apodrecem com o tempo. Os sinos, o farol e as placas de metal foram roubados. Junto com eles, perdeu-se um capítulo importante da história da linha férrea regional e de uma tentativa de resgatar o passado por meio do turismo.


Seu Tarcísio participou do projeto. Ele conta que precisou da ajuda de três ferroviários e de muito empenho para que a estação turística ganhasse forma. Eles foram até a estação Imbuia para retirar os trilhos abandonados após a desativação da estrada de ferro. Desmontaram três quilômetros da linha de ferro que estava abandonada, primeiro retiraram os pregos, soltaram os trilhos e, por fim, recolheram os dormentes. Para transportar todo o material foi necessária uma carreta. A linha foi remontada perto da BR 459, mas o trecho era curto demais. Com a ajuda de um deputado, foram levados para o local materiais necessários para a construção de mais cinco quilômetros de estrada. Para adquirir a locomotiva, que chegou de Três Corações em uma carreta, uma associação criada no município e a Prefeitura arcaram com as despesas. Depois de finalizadas as obras de construção da linha, foi realizada a inauguração do trecho. O passeio custava cinco reais e o percurso era feito até o bairro Belo Horizonte, em Pouso Alegre, de onde o trem voltava para a estação. Depois de algum tempo, houve alguns problemas entre os dirigentes e Seu Tarcísio se desligou da associação. Tempo depois, a linha foi desativada. Como os custos de manutenção de uma linha turística são altos e não houve mais interesse por parte das autoridades. Seu Tarcísio e outros entusiastas viram morrer o sonho de vivenciarem um novo apogeu da linha férrea em Pouso Alegre, agora como atração turística.

Sentimento semelhante tem o ex-ferroviário José de Paula Andrade, o Seu Juca. Os passos em direção à antiga Estação de Trem de Pouso Alegre, no centro da cidade, são lentos, seguem o ritmo da idade de Seu Juca, hoje com 82 anos. E ele não tem pressa de chegar ao destino, onde, por 18 anos, foi seu local de trabalho. Por alguns instantes, o ex-ferroviário parece se esquecer do presente ao interromper inesperadamente a caminhada. O olhar se fixa na direção da antiga Estação e analisa cada detalhe. A respiração logo fica profunda e a face é emoldurada por lágrimas, enquanto surgem, à sua frente, cenas do passado, que apenas ele pode ver.

A vida do ex-ferroviário seguiu novos rumos com o fim da estrada de ferro. Mas, para ele, é impossível não se lembrar do dia a dia da pacata cidade do século passado e do grande movimento na estação da cidade. Chegavam carroças, tropas, carros de boi, cavaleiros e carro de luxo que disputavam espaço com as locomotivas. Nas janelas, olhares curiosos acompanhavam quem chegava a cidade. E, na plataforma de embarque, muitas lágrimas rolavam nas partidas. A estação era ponto de encontro para uma boa conversa entre os fazendeiros que marcavam ponto no local.

Era madrugada quando o galo interrompia mais uma vez o sono da vizinhança e a cidade começava a despertar. Minuto a minuto, o apito avisava que o trem estava se aproximando da cidade. À medida que avançava, o som ficava mais intenso e, naquela manhã, parecia ser diferente, como se anunciasse que o trem percorria os trilhos em sua última viagem. Logo o dia amanheceu e Seu Juca partiu rumo ao seu trabalho. No caminho, ele percebia o intenso movimento de carros pelas ruas e avenidas que cresceram rapidamente. O barulho das buzinas penetrava em seus ouvidos. Eram cenas diferentes da época que conquistou seu espaço no mundo das ferrovias. Mesmo sem entender essas transformações ele seguiu rumo à bilheteria da estação.

Antes de o dia terminar, ele sabia que sua missão seria interrompida quando cruzasse a porta de entrada da estação. Aquele seria o dia em que o ferroviário Seu Juca, ou Juquinha da estação, seria testemunha da cena mais triste da sua vida. As mesmas mãos que, por anos, venderam bilhetes aos passageiros seriam as responsáveis por usar as chaves da estação para fechá-la definitivamente. Depois de quase 40 anos dedicados à linha férrea, parte de sua vida era levada, naquela tarde do dia 31 de outubro de 1983, pelo trem que um dia cruzou a sua vida.

Inconformado com o fim da ferrovia e para não presenciar a retirada dos trilhos e dormentes, Seu Juca, que residia perto da estação, mudou-se para longe do antigo local de trabalho. Mesmo depois de tantos anos, ele ainda se lembra de cada detalhe e lamenta que, em todo esse tempo, as únicas chaves que passou a carregar consigo são as de sua casa, que fica bem distante da antiga estação. Dor para uns, sinônimo de felicidade para outros, o espírito saudosista é o combustível para o retorno dos trens aos trilhos, mesmo que apenas turísticos, em cidades da região.

NA JANELA DA SAUDADE

Percorrendo a antiga estação de Itajubá, José Arildo do Carmo parece aguardar ansioso a chegada de um trem, que jamais passará novamente pelo local. O tempo passou para o aposentado de 61 anos, mas as cenas continuam vivas na sua memória. Filho do ex-ferroviário “Niquinho”, que trabalhou por 30 anos na oficina da Rede Mineira de Viação em Itajubá, foi lá que ele aprendeu a dar os primeiros passos em direção às locomotivas. Quando não ia até a oficina com o pai, era de casa que ele admirava os trens. O sol já ia baixando no horizonte, sumindo ao longe por detrás da serra, e o pequeno José Arildo do Carmo corria para os braços da mãe, pedindo para que ela repetisse o ritual diário: colocá-lo na janela lateral da sala da casa simples em que viviam para que o menino sonhador, apesar de seus cinco anos de vida, pudesse ver a imensa máquina de ferro seguir caminho sobre os trilhos e dormentes que se debruçavam no caminho rente ao pasto ao lado da humilde moradia. O apito anunciava que a Maria Fumaça estava muito perto e, qualquer descuido, impediria o garoto de espiar o que, para ele, seria seu futuro.


O trem passava pelo centro e fazia uma curva para seguir em direção ao Bairro Boa Vista. Nesse instante, apitava porque havia um cruzamento logo à frente. Esse percurso, conhecido como “a volta da linha”, deixava o garoto em alerta. Mais alguns metros, no quilômetro 85, a Maria Fumaça apitava, era sinal de que estava bem próxima. O cheiro da lenha queimada e do vapor lançado contagiava o menino. “Minha mãe sempre me contava e achava engraçado [...] Se ela não me levasse para ver o trem eu chorava até passar outro trem”, conta sorridente, como se estivesse vendo a cena. Com o passar dos anos, o ritual foi mantido, mas ele já corria sozinho para presenciar a passagem do trem. Os maquinistas, acostumados com a atitude do garoto, acenavam para ele quando passavam. Embora fosse novo demais, ele tinha a certeza de que sua vida se cruzaria com a história das ferrovias.


Agora, a estação em que José Arildo respira saudade está vazia, muito diferente dos dias de intenso movimento do passado. Entrando na estação, à esquerda, está o balcão do telégrafo e, mais à frente, a bilheteria. Mais alguns passos, e José Arildo se depara com a plataforma de embarque e desembarque. É impossível imaginar quantas pessoas passaram pelo local, quantas as partidas e despedidas, ou os destinos seguidos em cada uma das estações da vida, que sonhos ficaram e os que foram esquecidos devido ao tempo. O olhar fixo do aposentado não perde um único detalhe. O sino e o relógio que ficavam pendurados na parede não existem mais, o tempo ficou parado. Só se ouvem buzinas ao longe. Por alguns instantes, ele observa atentamente tudo à sua volta. Embora não tenha trabalhado sobre os trilhos como o pai, sente falta dos tempos das grandes máquinas de ferro.

José Arildo não está sozinho. Também filho de ferroviário, Seu Tarcísio Silva, 77 anos, não suportou esperar pelo retorno improvável das locomotivas. A vida fez dele bancário e advogado, mas a realização pessoal só veio com um ofício que ele não sabe nomear. Há 20 anos, ele resolveu construir no quintal de casa, na cidade de Pouso Alegre, uma mini-ferrovia, reproduzindo em detalhes a paisagem típica de Minas Gerais. Um a um, os trilhos foram cuidadosamente fixados ao chão com dormentes de madeira feitos de caibro. Para fazer os trilhos, ele utilizou duas cantoneiras e um “T”, que foram soldados. A bitola dos trilhos é de 60 centímetros, menor que a bitola dos trilhos da Sapucaí que eram de 1 metro de distância entre as duas extremidades dos trilhos. Duas linhas se cruzam, permitindo algumas manobras entre um trem de cargas e de passageiros. A brincadeira em tamanho próximo do real começou na antiga casa em que residia, com um trole para brincar com seus filhos. Depois, ele desenhou um vagão de carga, levou o projeto a uma serralheria para ser feito com chapa de ferro. Em seguida, foi a vez de criar um vagão de passageiros e, por último, ele construiu uma locomotiva modelo a diesel.


O espaço foi ficando pequeno demais para tanta imaginação e Seu Tarcísio decidiu comprar uma casa com um quintal bem maior. Conseguiu um caminhão para transportar tudo para a nova residência e a montagem foi feita com a ajuda do filho Daniel que, desde pequeno, também é um apaixonado pelos trilhos. Hoje, o quintal tem um complexo ferroviário com 80 metros de trilhos. Cada trecho é sinalizado com placas que indicam a quilometragem, há até um desvio e uma pequena oficina de manutenção. Mas o que realmente chama a atenção é a locomotiva, vermelha com listras amarelas e com o tamanho de uma pessoa. Ligada a locomotiva, o tímido Seu Tarcísio abre imediatamente o sorriso, e faz questão de mostrar todo o funcionamento da máquina. Engatados nela, estão três vagões, sendo um especial para os correios, outro para o transporte de passageiros e, o último, para carga.

O pai de Tarcísio sabia do amor que ele tinha pelas ferrovias, mas não queria que o filho único embarcasse naquela vida sacrificada, devido ao baixo salário. Para satisfazer a vontade do pai, ele se dedicou aos estudos, comenta emocionado e se cala em seguida. O silêncio e as lágrimas explicam as angústias e sofrimentos que ele carrega por ter trilhado o caminho que almejava. “Eu me arrependo de não ter entrado na ferrovia. Eu deveria ter entrado”, desabafa. A dedicação com que ele preserva parte da história testemunhada pelo pai e que ele não teve a oportunidade de viver são guardadas na memória do saudosista, juntamente com os trens que o progresso tirou dos trilhos.

DESTINOS CRUZADOS

Na infância, o sonho de Dilno Pereira Lopes era ser maquinista. Embora sua vida seguisse um traçado diferente do das ferrovias, um dia o destino foi responsável por fazer sua história cruzar a dos trilhos. Passava da meia noite de 4 de setembro de 1974 e chovia muito. Dilno Pereira Lopes estava a bordo de um ônibus que seguia do interior de São Paulo para o sul de Minas. Nessa época, o jovem tinha apenas 19 anos e estudava em Santa Rita do Sapucaí, onde fazia parte do Tiro de Guerra do Exército. Faltavam três dias para as comemorações da Independência do Brasil e, após passar alguns dias com a família, que morava em Piracicaba, o dever o chamava de volta a Santa Rita, para participar das festividades do Sete de Setembro.

O retorno para a cidade sul mineira foi complicado desde o começo. Ele perdeu o ônibus no qual embarcaria, devido às mudanças de horários da empresa que atendia a linha. A segunda alternativa foi dirigir-se para São Paulo, mas o congestionamento fez com que ele chegasse atrasado ao terminal rodoviário e perdesse o ônibus novamente. Por sorte, ou ironia do destino, a empresa havia disponibilizado uma linha extra naquele dia. Enquanto comprava a passagem, uma garota se aproximou dele e perguntou se aquele ônibus teria como destino a cidade de Santa Rita do Sapucaí. Ele disse que sim e ela também comprou seu bilhete. Os dois se sentaram nas poltronas do lado esquerdo do corredor, bem próximas do motorista. A jovem moça pediu para trocar de lugar com ele, ficando ao lado da janela e ele ao lado do corredor. Durante a longa viagem, eles conversaram sobre vários assuntos, inclusive sobre um acidente que havia ocorrido, havia poucos dias em Pouso Alegre. Um Chevete havia sido arrastado por um trem. Mas, mal sabiam eles que o motorista daquele horário em que eles viajavam estava dobrando a carga horária e o cansaço do funcionário era inevitável.


Depois de uma rápida parada no antigo posto Mavesa, na Rodovia Fernão Dias, já em Pouso Alegre, algumas pessoas desceram no local. Para elas, era apenas o fim da viagem. Mas, em seguida, o ônibus foi em direção a cidade. Na época, havia um cruzamento entre a rodovia e a linha férrea, ponto que exigia extrema atenção dos motoristas. “Na passagem de nível, não tinha uma cancela, sinal luminoso, não tinha nada. Havia apenas uma placa que não refletia. Então, na chuva e no meio da noite, não daria pra ver mesmo”, explica Dilno. A parada era obrigatória antes de os veículos avançarem sobre os trilhos; contudo, o motorista do ônibus não parou, desobedeceu ao sinal de alerta que o advertia sobre cruzar os trilhos. Na sua direção, seguia um trem cargueiro com 37 composições e que havia acabado de sair da estação de Pouso Alegre rumo a Itajubá. Com o impacto da colisão com o trem, o ônibus foi arrastado por aproximadamente 200 metros, ficando totalmente destruído. As pessoas que passavam próximas ao cruzamento paravam curiosas para saber o que havia acontecido. Em meio à escuridão e à chuva que não cessava, o silêncio tomou conta do local por alguns minutos. A cena era de destruição e medo. As marcas de sangue estavam espalhadas nos trilhos. Era impossível encontrar sobreviventes em meio aos ferros retorcidos pelo forte impacto. “As cenas que ficaram na minha cabeça foram de uma praça de guerra. Pessoas feridas. Ver os destroços do ônibus foi uma cena muito forte”, comenta Dilno.


O silêncio foi quebrado, quando Dilno percebeu que algumas pessoas se aproximavam do ônibus à procura de sobreviventes. Sem entender o que estava acontecendo, ele ouviu uma voz que lhe perguntou se conseguia andar. Em seguida, o colocaram em pé ao lado do aterro pelo qual passava a ferrovia e ele desmaiou. O então jovem servidor do Exército somente foi entender o que havia acontecido depois que acordou no hospital. Para os amigos da república em que morava, chegou à notícia de que ele havia morrido. “E como os jornais me davam como morto, foi muito difícil para a família”, lamenta. Para alguns ocupantes do ônibus foi o fim da linha, mas Dilno, e a sua companheira de viagem Dair tiveram a sorte de chegar ao seu destino. Além dos dois, uma terceira pessoa de nome Diomar também foi sobrevivente do acidente.


Naquela noite, Seu José de Paula Andrade, mais conhecido como Juca, que trabalhava na bilheteria da estação de Pouso Alegre, foi acordado às 4 horas da madrugada para comparecer ao local do acidente e dar assistência. Os populares que por lá passaram queriam linchar o maquinista Benedito Pereira e seu ajudante, Benedito Amâncio, que estavam no comando do trem. Para apaziguar a situação, Seu Juca os orientou a se esconderem em um dos vagões. Naquele momento, pouco se sabia sobre o que realmente havia acontecido. No dia seguinte, os jornais davam conta do acidente, mas divergiam quanto ao número de vítimas e de passageiros do ônibus. Em um velho recorte de jornal guardado por Dilno, a manchete é bem clara em relação ao acidente “Um ônibus na linha do trem” e a reportagem cita oito pessoas que teriam perdido a vida na tragédia. Em O Jornal do Brasil, de distribuição nacional, a edição 150, do dia 5 de setembro, trazia, na página 21 do primeiro caderno, a notícia “Trem arrasta ônibus em Pouso Alegre, mata oito e fere três gravemente”. O ônibus fazia o percurso São Paulo a Itajubá e passava todos os dias pela cidade de Pouso Alegre para deixar e recolher passageiros. De acordo com a matéria publicada, o motorista do ônibus Sebastião Maria Júnior não viu o sinal e atirou o veículo à frente da composição de carga que fazia a ligação de Pouso Alegre a Itajubá. A notícia também ganhou espaço na página 13 do Jornal Diário de Notícias, edição 16.096, do dia 5 de setembro, que tinha como título da reportagem: “Trem destrói ônibus, mata doze e fere 9”. De acordo com a publicação, no momento do acidente, chovia muito no local, tornando difícil a visibilidade na passagem de nível, que era mal sinalizada. Ainda sem compreender muito bem como se salvou, Dilno, agora engenheiro, guarda até hoje dois jornais da época que traziam como manchete o acidente e seu nome na relação dos mortos na tragédia.

A imprudência ou desatenção do motorista do ônibus foi a causa do acidente de 4 de setembro de 1974, mas Seu Juca conta que, no trecho da Sapucaí, os acidentes eram comuns e as causas, segundo ele, eram as condições precárias dos trilhos precárias e a falta de sinalização. Quando acontecia um desastre mais grave, logo era estampado nas capas dos principais jornais da região e até nos de circulação nacional. Nas páginas dos periódicos, os acidentes eram transformados em grandes acontecimentos, com reportagens repletas de imagens de terror nos trilhos, o que causava grande impacto na população. Mas as imagens que ficaram na lembrança das pessoas são mesmo as das charmosas Marias Fumaça que seguem tranquilas pelos trilhos, no ritmo de antigamente.

SENTIDOS DIFERENTES

Foi em um escritório no Departamento Nacional de Estrada de Rodagens na cidade do Rio de Janeiro que, no começo da década de 1950, o desenhista Aguinaldo Maranhão Cordeiro Falcão foi um dos responsáveis pelo projeto da Rodovia Fernão Dias. O que ele não imaginava era que, tempos depois, acompanharia de perto as obras de construção da estrada. Preocupado com o conforto e a qualidade de vida da família, o desenhista tratou de se mudar para Pouso Alegre em 1958. A filha Terezinha, hoje com 60 anos, se lembra de ver o pai chegando a sua casa, dia após dia de trabalho exaustivo, mas muito entusiasmado com os projetos que executava na região sul mineira.

 Terezinha e os irmãos gostavam de escutar as histórias do pai e ele não hesitava em compartilhar. Ela ouvia que os primeiros trechos da estrada foram abertos por máquinas “patrol”, puxadas por animais, e cada etapa da obra seguia em ritmo acelerado. A menina se sentia como se enxergasse aquele imenso tapete negro se formando para logo receber a estátua do bandeirante Fernão Dias. No dia em que os caminhões chegaram do Rio de Janeiro com aquele imenso monumento, dividido em três partes para ser transportado, o pai contou como a imagem foi cuidadosamente erguida. Ele foi um dos responsáveis por comandar o transporte da estátua do lendário personagem, esculpida em pedra de granito maciço. Foi uma tarefa difícil colocar em pé o caçador de esmeraldas que media aproximadamente 20 metros de altura e pesava 25 toneladas. O bandeirante ficou em uma posição estratégica no trevo que dá acesso à cidade de Pouso Alegre, como que observando quem passava pela rodovia com seu nome, mas sempre atento também às terras na linha do horizonte, as quais ele outrora havia desbravado.

Mesmo com a duplicação da Fernão Dias, a estátua permanece no local há mais de 50 anos e pode ser vista por quem chega ao trevo da principal entrada de Pouso Alegre. Terezinha faz parte da geração que cresceu e acompanhou o desenvolvimento sobre quatro rodas. Na infância, ela viu de perto a estrada de ferro e teve a oportunidade de passear na velha Maria Fumaça. Um ano antes da chegada do pai com toda a família em Pouso Alegre, foi criada, pelo governo a Rede Ferroviária Federal, que uniu 22 ferrovias do país, dentre elas, a Rede Mineira de Viação. O sistema ferroviário passou a pertencer ao governo federal e o Brasil se orgulhava de possuir a oitava maior ferrovia do mundo, com 38 mil quilômetros de trilhos.
Terezinha se recorda que, na década de 1960, os trens de passageiros atingiram seu apogeu em Minas. Porém, com o tempo, perderam espaço e a ferrovia passou a ser vista apenas como meio para o transporte de cargas. Com os investimentos e o crescimento do transporte rodoviário, os trens de passageiros “saíram da linha”. As locomotivas não conseguiram atingir a mesma velocidade do desenvolvimento tecnológico que chegava sobre o asfalto. No trecho sul mineiro da Sapucaí, surgiam os primeiros sinais de que os trens chegariam ao seu destino final. Com o desgaste dos trilhos, os
tombamentos e descarrilamentos eram comuns.

Embora saudosa dos bons tempos das ferrovias, Terezinha exibe orgulhosa uma medalha que o pai recebeu do ex-presidente Juscelino Kubistchek, governante que iniciou os investimentos na expansão rodoviária no Brasil. A relíquia é guardada cuidadosamente entre fotos igualmente importantes, como uma fotografia do pai com o presidente JK. Juscelino percebeu que o desenvolvimento do país apenas seria possível se ele facilitasse a entrada do capital estrangeiro no Brasil, com as multinacionais. Para alavancar o desenvolvimento, ele começou a investir na abertura de estradas pavimentadas. O ex-presidente planejava que o país crescesse 50 anos em cinco e apostou na indústria automobilística, que seria a responsável por atrair outras indústrias. Não demorou para o segmento ganhar espaço no mercado nacional e impulsionar o desenvolvimento rodoviário no país. As estradas de rodagem, então, se tornaram o principal meio de transportes de cargas e passageiros do país e, hoje, sua extensão ultrapassa os 56 mil quilômetros de estradas pavimentadas, enquanto as linhas férreas amargam a redução para apenas 9 mil quilômetros.

Mas o sul de Minas não padeceu do lamento saudosista e se, no século passado, as ferrovias foram responsáveis por movimentar a indústria cafeeira, que movia a economia do país e da região sul mineira, atualmente são as enormes indústrias que investem na região. Considerada um dos mais importantes eixos de transportes do Brasil, a Rodovia Fernão Dias, que em Pouso Alegre encontra a BR 459, desempenha um papel importante de ligação do sul de Minas com a rodovia Presidente Dutra, em direção ao Rio de Janeiro, e tal entroncamento tem atraído empresas de várias partes do Brasil e de outros países, colocando a economia regional novamente nos trilhos e em ritmo acelerado.

Emocionada, Terezinha se lembra de que o pai teve uma participação muito importante no desenvolvimento de Pouso Alegre, décadas atrás, com o trabalho prestado para a construção da Fernão Dias, e ela teve a felicidade de testemunhar o desenvolvimento econômico do município e da região em função da estrada federal. Estacionada na entrada da cidade, a imagem do desbravador Fernão Dias, que há tempos assiste à marcha regional pelo desenvolvimento, atualmente divide espaço com um grande anel viário, que compõe o novo cenário da Fernão Dias. Entretanto, até chegar à próspera realidade atual, a região sul mineira sofreu com uma época em que o trem ainda seguia seus caminhos sinuosos, nos quais muitas vidas foram tragicamente interrompidas.

O DIA QUE O TREM PAROU 

Era durante a noite que ele aparecia para cortejá-la no portão de casa. Vestindo uma enorme capa preta, o jovem galanteador conquistava, com doces palavras, a jovem apaixonada Odete Sales Abranches, na época, com 22 anos. Mas também era uma oportunidade para ele compartilhar com a amada as dificuldades que sua família enfrentava devido à falta de pagamento do salário dos ferroviários da Rede Mineira de Viação, para a qual o jovem rapaz “da capa preta”, Sebastião Abranches, e o pai, Paulino Roque Abranches, trabalhavam. Mesmo desanimado com a situação financeira que enfrentava, ele sonhava em constituir a própria família. A jovem era seduzida pela determinação do rapaz para superar qualquer desafio desde que iniciou o namoro com o ferroviário. Nos encontros, Sebastião sempre comentava sobre a realidade vivida em casa e no trabalho, assim como sobre uma manifestação que era organizada com o objetivo de lutar contra a miséria que castigava as famílias dos ferroviários.

Na época, o Brasil passava por um período de transição. Era o fim do governo do presidente Gaspar Dutra e início do governo Getúlio Vargas. O país entrou numa crise econômica muito intensa, com inflação elevada e falta de dinheiro para pagar as importações. Odete, hoje com 86 anos, se recorda que os ferroviários não recebiam salários havia mais de três meses e o valor da remuneração era muito baixo, o que agravou a situação dos trabalhadores e de suas famílias. Uma cooperativa que servia á Rede não atendia às necessidades dos trabalhadores e já faltavam alimentos essenciais. Odete comenta que era planejada uma greve, liderada pelas esposas dos ferroviários.

Com voz mansa e suave, Odete relembra que, poucos dias antes do início das manifestações grevistas, o sogro, Paulino Roque Abranches, convidou amigos ferroviários para um baile em casa. Era a maneira encontrada por ele para despistar as autoridades e acobertar a realização de uma reunião para os ferroviários se organizarem e auxiliarem as esposas nos atos grevistas. Contudo, Paulino e os colegas foram surpreendidos por um coronel que trabalhava na cidade de Itajubá. Pegos em fragrante, ele foi preso e permaneceu por dois dias na cadeia. “Meu sogro foi demitido, mas, depois de um tempo, ele voltou e foi transferido para Três Corações”.


Ainda hoje, ela se emociona ao se lembrar dos episódios do período que ficou conhecido como greve das mulheres, quando as esposas dos ferroviários clamavam por melhores condições de trabalho para eles e de vida para suas famílias. Era uma luta travada pelo pão de cada dia e pela preservação da vida, um ato de coragem. Odete se recorda que os ferroviários haviam perdido a credibilidade e os comerciantes itajubenses não vendiam fiado para quem trabalhava na ferrovia, pois os trabalhadores ferroviários passaram a ser vistos como mal pagadores. Diante dessa situação, a vida das famílias tornava-se cada vez mais difícil. A dispensa, agora, estava vazia. Não havia mais arroz nem feijão. A cada dia, a situação era mais difícil de ser controlada. “Fome a família do meu esposo nunca passou, mas tinham uma vida de muitas dificuldades”, conta Odete. Porém, nem todas as famílias tiveram a mesma sorte. Os olhos das mães já não tinham lágrimas para expressar tanto sofrimento, que aumentava com a dor de ouvir os filhos chorarem por um pedaço de pão. Inconformadas com tanto descaso da Viação, mulheres de ferroviários uniram suas vozes com outras inúmeras e encontram na luta a melhor resposta para resolver os problemas dos maridos.
Segundo Odete, os atos liderados pelas esposas chamaram a atenção das autoridades, que ficaram incomodadas com o movimento grevista.

A tomada de locomotivas por mulheres de ferroviários foi um dos episódios mais dramáticos e heroicos da greve. Quem dependia do transporte ferroviário para se deslocar para o trabalho em um município vizinho, ficou sem ter como se locomover. “Foi uma confusão na cidade [de Itajubá]”, comenta Odete. A primeira locomotiva a ser parada foi a n° 437, em Cruzeiro, São Paulo, que se tornou a marca do movimento. Apelidada de Joana, a enorme máquina recebeu um cartaz com letras vermelhas que deixaram claros os motivos do movimento: “Nossa luta é contra a fome e a miséria”. Tudo aconteceu no dia 24 de setembro de 1949, quando duas jovens de nomes Geny e Elza, com a bandeira brasileira nas mãos, se jogaram na frente de uma locomotiva que estava na estação de Cruzeiro, São Paulo, pronta para partir, e impediram o maquinista de seguir viagem. Decididas a romper o silêncio dos maridos diante das condições ruins de trabalho, as mulheres deram início à greve na Rede Mineira de Viação. Marchando com os filhos nos braços, elas seguiam pelos trilhos, algumas no último mês de gestação. Odete se lembra que o namorado também comentava sobre os manifestos que ele presenciou em Itajubá, onde manifestantes também impediram que os trens seguissem pelos trilhos. “Em pouco tempo, a plataforma da estação estava lotada de familiares em busca de notícias”, conta.

Odete comenta também que o namorado contava que a manifestação se estendera por onze dias e percorrera várias cidades que faziam parte da Rede Mineira de Viação, dentre elas, os municípios mineiros de Soledade de Minas, Três Corações e Divinópolis, além de Itajubá. No dia 4 de novembro, o movimento foi contido pela força policial do Governador Macedo Soares, um dia depois do governante anunciar que tudo seria resolvido. Policiais aproveitaram períodos em que a população não se encontrava na estação e o número de grevistas era reduzido e espancaram mulheres e crianças. Uma grevista, identificada como Rita Cássia Pinto, foi barbaramente agredida e ficou por onze horas em estado de coma. Pouco tempo depois, Odete se casou com Sebastião e, então, assumiu a posição de esposa de ferroviário. A situação dos profissionais das ferrovias pouco melhorou, mas a união durou e dela nasceram cinco filhos.

CONFLITO NOS TRILHOS

Já faz cinco décadas desde que Seu Pedro, ex-conservador de Linha, passou pela última vez pela estrada que dá acesso ao cenário de um dos mais graves acidentes ferroviários registrados no sul de Minas. O ex-ferroviário confere cuidadosamente se o traje escolhido está adequado para uma missão tão importante, como se as rugas que lhe cobrem a face e as histórias que ele narra, num monólogo eloquente, não fizessem dele digno de retornar ao local histórico, onde muitas vidas foram interrompidas precocemente. Cada quilômetro percorrido, agora como passageiro de um carro, torna as lembranças mais próximas e o ex-ferroviário mais introspectivo. Aos 82 anos, o senhor de fala calma aperta ansioso uma mão contra a outra e esboça um sorriso a cada nova curva do caminho. O cheiro do mato que cobre parte da estrada, onde antes havia trilhos e dormentes, invade o veículo e faz com que o ex-ferroviário se veja na época em que trabalhava na linha próxima à estação do Pedrão. O sorriso largo imediatamente surge.

Não demora e Seu Pedro se lembra das dificuldades enfrentadas para conseguir o primeiro emprego. O que ele queria era trabalhar para sustentar a família. “Eu tenho lembranças; saudades não. Era muito difícil o trabalho pra cá”, comenta. Ele era um simples operário que trabalhava em meio ao sol e à chuva. A jornada de trabalho tinha início de madrugada e terminava no fim da tarde. Muitas vezes, a chama da lanterna de querosene era a única luz que ele tinha para aguentar as longas horas de trabalho.

Passados mais alguns quilômetros, Seu Pedro aponta orgulhoso para uma espécie de túnel, que se apresenta majestoso logo à frente, como se o próprio ex-ferroviário tivesse trabalhado na obra que, por anos, permitiu à Maria Fumaça transitar entre a cidade de Maria da Fé e a estação Pedrão, no município de Itajubá. Parte da imponente rocha está coberta por pequenas plantas, que se esgueiram em busca de sol, enquanto filetes d’água brotam por entre o manto verde viscoso. O ex-conservador de Linha ressalta não ter trabalhado na obra, que foi executada no século XIX, e também se preocupa em deixar claro que não foi uma das testemunhas do acidente que ocorreu ali perto, em 1926. Seu Pedro agora parece aflito. Teme decepcionar quem ouve as histórias que, há anos, ninguém lhe pede para contar.

O ex-ferroviário pede para descer do carro e segue em direção a um lugar tranqüilo, que esconde, entre mato e bananeiras, marcas de um terrível acidente de trem registrado no ano de 1926, desconhecido pela maioria das pessoas que passa pelo local. O triste episódio, motivado por falha humana e que custou a vida de três funcionários da Viação, ocorreu no quilômetro 62 da serra de São João, entre as cidades de Maria da Fé e Itajubá. A locomotiva n° 172, que deveria chegar à cidade de Itajubá às 20 horas do dia 26 de março, caiu com quase toda a composição rolando, em um grande aterro. Quando o trem se aproximou do local, recebeu do responsável pela vistoria a lanterna verde, símbolo de que tudo estava em ordem na linha. Entretanto, na tarde daquele dia 26, houve uma grande tempestade na região e o responsável pela vistoria do trecho, na verdade, não fez a verificação dos trilhos devido à forte chuva. O vistoriador preferiu se proteger do temporal a se molhar para verificar se havia algum problema nos trilhos. Seu Pedro conta que, sob a linha, existia um aterro com um bueiro que dava vasão para a água da chuva e, naquele dia, a grande quantidade de água da chuva destruiu o aterro, deixando os trilhos suspensos no ar, o que não foi identificado pelo responsável pela vistoria.


O desastre foi registrado na edição n° 593 do Jornal Correio do Sul, da cidade de Santa Rita do Sapucaí, do dia 28 de março de 1926, com o título “Mais um”, já que os descarrilamentos e tombamentos de locomotivas eram comuns na região. “Pra tirar a máquina, construíram uma linha de 200 metros pra emendar lá adiante. Levou uns 15 dias pra dar conta dela aqui fora”, explica Seu Pedro. Quando ele trabalhou no local, presenciou diversos acidentes, muitos deles nas curvas. “Os guinchos que ajudavam a retirar os vagões e locomotivas que tombavam ou passavam por algum acidente demoravam muito para chegar”, lamenta o ex-ferroviário. Mas os acidentes não eram os únicos problemas enfrentados por aqueles que trabalhavam na linha férrea.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O ÚLTIMO APITO DO TREM

O dia começava quente e sereno em 1984. Pela porta entreaberta, o sol invadia a sala e já era possível ouvir o som da Maria Fumaça, que, pelo longo apito, certamente dobrava a última curva para dali a pouco chegar à estação de Lavras. Era lá que Carlos, controlador de Tráfego Ferroviário, dividia a sala e parte das responsabilidades com o colega Ricardo Pedroso, na época, digitador de Dados. Nas duas mesas dispostas perpendicularmente no canto próximo à janela, os dois se apertavam entre pranchetas com gráficos de circulação dos trens e aparelhos de comunicação, entre eles, alguns telefones e uma máquina de telex. Todas as informações que chegavam à estação passavam por Carlos e eram, posteriormente, conferidas por Ricardo. Notícias sobre descarrilamentos, atrasos dos trens, encomendas extraviadas, não faltavam tampouco trabalho para a dupla.

Naquela manhã, um dia de trabalho como os outros, nenhuma informação sobre um acidente grave ou sobre problemas na linha férrea havia chegado. Carlos e Ricardo trabalhavam tranquilamente, fazendo somas e construindo gráficos, quando a máquina de telex deu sinal de que notícias estavam para chegar. Ricardo correu para perto do aparelho para receber a informação e não tardou a começar a ler a mensagem. Carlos percebeu que o colega empalideceu rapidamente e balançava a cabeça como quem não acredita no que vê. Carlos logo pensou que um acidente muito grave havia ocorrido e pediu para que a informação fosse compartilhada. Ricardo não hesitou em atender o amigo. Naquele momento, Carlos ficou sabendo que o dia 12 de maio daquele ano seria o fim do tráfego no trecho da Viação Férrea Sapucaí. Cada palavra era pronunciada lentamente pelo digitador. Finalizada a leitura, um vazio tomou conta da sala. Em seguida, Carlos pegou o papel em suas mãos para que pudesse ver com os próprios olhos. Não era sonho, era verdade: o fim da linha férrea que tantas vezes ele tinha percorrido. As lágrimas brotaram rapidamente dos olhos. Por vários minutos, o controlador de Tráfego não conseguiu esboçar outra reação diante da triste notícia que acabava de testemunhar.

Passadas quase três décadas, Carlos ainda se recorda de detalhes da mensagem lida naquele dia: “Lembro como se fosse hoje. Recebemos o telex enviado pelo engenheiro residente de Via Permanente, Sr. Wanilson Leão Alkimim, informando que ficava suspenso o tráfego de trens no referido trecho, por tempo indeterminado, com a alegação de que a ponte ferroviária do Km 168, entre Pouso Alegre e Imbuia, não oferecia condições de circulação para os trens, uma vez que a mesma apresentava erosão nas cabeceiras”. Com a voz embargada, o ex-controlador de Tráfego completa: “Foi muito chocante por dois motivos, um porque era uma região onde eu comecei a trabalhar na ferrovia e outro por eu ver que por ali passaram muitas coisas que contribuíram para o progresso da região e do país”.

Bem longe, entre as montanhas, o sol perdia sua força para dar espaço para a noite que surgia. Já em casa, ainda era difícil para Carlos acreditar que, depois de quase cem anos de operação, chegava ao fim a Viação Férrea Sapucaí. Em cada cidade pela qual a linha férrea passou, deixou marcas e transformou muitas vidas, inclusive a de Carlos. A Viação significou progresso tecnológico para uma sociedade acostumada com o silêncio, o mesmo que o controlador de Tráfego sentia naquele instante. Ele sabia que a ferrovia havia sido o principal meio de transporte do país, mas agora perdia força para as novas vias do desenvolvimento, as rodovias.

Durante aquela primeira noite após receber a fatídica notícia, Carlos tinha seu sono interrompido a todo o momento. Em seu pensamento, surgiam fragmentos da história da estrada de ferro, que fora construída com muito sacrifício. Ele também se lembrava das histórias que o avô materno contava sobre a ferrovia. Durante toda a noite, as lembranças driblaram o sono de Carlos. Angustiado, ele pensava sobre como os trilhos adormeceriam silenciosamente em seu leito de morte. Os pensamentos do controlador de Tráfego só foram interrompidos pelo apito estridente da locomotiva, anunciando a primeira partida do dia e que para ele, agora ecoava como um grito de socorro. Dia após dia, o jovem alegre e sorridente permaneceu calado. O silêncio era um ritual em memória da realidade que ele veria ser drasticamente modificada em pouco tempo. Três décadas se passaram e as estações continuam em pé, mas sem o vigor de antes e não mais emolduradas pelos trilhos e dormentes.


quarta-feira, 7 de maio de 2014

Silêncio nos Trilhos

Algumas placas enferrujadas e envelhecidas nos mostram o caminho que em tempos passados eram percorridos pelas locomotivas. Sobre as montanhas, estradas foram abertas para implantar os primeiros trilhos. A natureza dividiu espaço com o barulho da imensa máquina de ferro que transformou a paisagem da região. Hoje, o silêncio toma conta desses locais que foram testemunhas da história da viação férrea. Percorrer esses caminhos nos permitiu fazer uma viagem ao passado. Esquecer o mundo real e mergulhar em um período no qual tudo girava em torno das ferrovias. Nessa viagem, pudemos reconstruir novamente essa história, observar cada detalhe, ouvir as pessoas e descobrir a importância da estrada de ferro para o desenvolvimento e o crescimento do sul de Minas.

Quando falamos sobre as ferrovias, o assunto desperta paixões. No passado, a estação de trem era mais que uma simples plataforma de embarque e desembarque de passageiros e cargas; era sinônimo de progresso. As poderosas locomotivas foram consumidas pelo tempo. A força delas impulsionou sonhos mas também sepultou vidas. Para muitos ferroviários, a relação com as ferrovias ainda é intensa, resistindo a todos os avanços tecnológicos. Impulsionados pela nostalgia de histórias contadas por ex-ferroviários e saudosistas, nós embarcamos no trem da vida de volta ao passado para conhecer a história da “Viação Férrea Sapucaí”.

A proposta deste livro reportagem foi percorrer os caminhos apagados pelo tempo, com o objetivo de identificar “arquivos vivos” que reconstroem essa narrativa histórica. Percorremos estação por estação, encontramos ex-ferroviários e saudosistas ao longo do trecho, personagens importantes para elaborar este trabalho. Tivemos contato com mais de 20 ex-ferroviários, muito deles com idade já avançada. Também fizemos uma ampla pesquisa em museus, livros, artigos e jornais antigos para fundamentar nossa produção.
Para construir o relato jornalístico, utilizamos linguagem simples e com alguns traços poéticos, valorizando o texto com os testemunhos dos personagens. As entrevistas foram realizadas em ambiente externo, escolhido a partir da relação de cada um com o fato narrado, a fim de que os personagens pudessem mergulhar na atmosfera de tempos passados. Dentre os diversos desafios que enfrentamos ao longo dessas viagens, o maior foi percorrer os trilhos da memória de cada entrevistado. Primeiramente, tivemos que ganhar a confiança de cada um deles, para depois mergulhar nas histórias com as quais, há muito tempo, eles não tinham contato.

O livro reportagem foi desenvolvido entrelaçando vários assuntos, com depoimentos de participantes ou testemunhas desde a implantação até a desativação dos trilhos da Viação Férrea Sapucaí. Nosso objetivo é mostrar aos leitores, por meio de recortes na história, o impacto das ferrovias no século passado e o seu declínio, em favor das rodovias, hoje responsáveis pelo desenvolvimento do país, com destaque para o sul de Minas. Percorremos as cidades de Pouso Alegre, Itajubá, São Lourenço, Cristina e Maria da Fé, e focamos as entrevistas nas três primeiras cidades, onde se concentra o maior número de ex-ferroviários. Para produzir as fotografias que ilustram e complementam o livro tentamos captar imagens que ilustram a dor e o sofrimento de cada ex-ferroviário, saudosista da estrada de ferro.

A viagem terminou nos 10 quilômetros que restam dos 268 quilômetros da antiga “Viação Férrea Sapucaí”. Nesse trecho uma antiga Maria Fumaça percorre os trilhos nos finais de semana entre as cidades de São Lourenço e Soledade de Minas para um passeio turístico. É uma oportunidade de viajar para o tempo em que imperavam essas imensas máquinas, responsáveis pelo progresso da região. Na estação, é impossível não mergulhar na história e viver a magia que a ferrovia proporciona.