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sexta-feira, 9 de maio de 2014

O ÚLTIMO APITO DO TREM

O dia começava quente e sereno em 1984. Pela porta entreaberta, o sol invadia a sala e já era possível ouvir o som da Maria Fumaça, que, pelo longo apito, certamente dobrava a última curva para dali a pouco chegar à estação de Lavras. Era lá que Carlos, controlador de Tráfego Ferroviário, dividia a sala e parte das responsabilidades com o colega Ricardo Pedroso, na época, digitador de Dados. Nas duas mesas dispostas perpendicularmente no canto próximo à janela, os dois se apertavam entre pranchetas com gráficos de circulação dos trens e aparelhos de comunicação, entre eles, alguns telefones e uma máquina de telex. Todas as informações que chegavam à estação passavam por Carlos e eram, posteriormente, conferidas por Ricardo. Notícias sobre descarrilamentos, atrasos dos trens, encomendas extraviadas, não faltavam tampouco trabalho para a dupla.

Naquela manhã, um dia de trabalho como os outros, nenhuma informação sobre um acidente grave ou sobre problemas na linha férrea havia chegado. Carlos e Ricardo trabalhavam tranquilamente, fazendo somas e construindo gráficos, quando a máquina de telex deu sinal de que notícias estavam para chegar. Ricardo correu para perto do aparelho para receber a informação e não tardou a começar a ler a mensagem. Carlos percebeu que o colega empalideceu rapidamente e balançava a cabeça como quem não acredita no que vê. Carlos logo pensou que um acidente muito grave havia ocorrido e pediu para que a informação fosse compartilhada. Ricardo não hesitou em atender o amigo. Naquele momento, Carlos ficou sabendo que o dia 12 de maio daquele ano seria o fim do tráfego no trecho da Viação Férrea Sapucaí. Cada palavra era pronunciada lentamente pelo digitador. Finalizada a leitura, um vazio tomou conta da sala. Em seguida, Carlos pegou o papel em suas mãos para que pudesse ver com os próprios olhos. Não era sonho, era verdade: o fim da linha férrea que tantas vezes ele tinha percorrido. As lágrimas brotaram rapidamente dos olhos. Por vários minutos, o controlador de Tráfego não conseguiu esboçar outra reação diante da triste notícia que acabava de testemunhar.

Passadas quase três décadas, Carlos ainda se recorda de detalhes da mensagem lida naquele dia: “Lembro como se fosse hoje. Recebemos o telex enviado pelo engenheiro residente de Via Permanente, Sr. Wanilson Leão Alkimim, informando que ficava suspenso o tráfego de trens no referido trecho, por tempo indeterminado, com a alegação de que a ponte ferroviária do Km 168, entre Pouso Alegre e Imbuia, não oferecia condições de circulação para os trens, uma vez que a mesma apresentava erosão nas cabeceiras”. Com a voz embargada, o ex-controlador de Tráfego completa: “Foi muito chocante por dois motivos, um porque era uma região onde eu comecei a trabalhar na ferrovia e outro por eu ver que por ali passaram muitas coisas que contribuíram para o progresso da região e do país”.

Bem longe, entre as montanhas, o sol perdia sua força para dar espaço para a noite que surgia. Já em casa, ainda era difícil para Carlos acreditar que, depois de quase cem anos de operação, chegava ao fim a Viação Férrea Sapucaí. Em cada cidade pela qual a linha férrea passou, deixou marcas e transformou muitas vidas, inclusive a de Carlos. A Viação significou progresso tecnológico para uma sociedade acostumada com o silêncio, o mesmo que o controlador de Tráfego sentia naquele instante. Ele sabia que a ferrovia havia sido o principal meio de transporte do país, mas agora perdia força para as novas vias do desenvolvimento, as rodovias.

Durante aquela primeira noite após receber a fatídica notícia, Carlos tinha seu sono interrompido a todo o momento. Em seu pensamento, surgiam fragmentos da história da estrada de ferro, que fora construída com muito sacrifício. Ele também se lembrava das histórias que o avô materno contava sobre a ferrovia. Durante toda a noite, as lembranças driblaram o sono de Carlos. Angustiado, ele pensava sobre como os trilhos adormeceriam silenciosamente em seu leito de morte. Os pensamentos do controlador de Tráfego só foram interrompidos pelo apito estridente da locomotiva, anunciando a primeira partida do dia e que para ele, agora ecoava como um grito de socorro. Dia após dia, o jovem alegre e sorridente permaneceu calado. O silêncio era um ritual em memória da realidade que ele veria ser drasticamente modificada em pouco tempo. Três décadas se passaram e as estações continuam em pé, mas sem o vigor de antes e não mais emolduradas pelos trilhos e dormentes.


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